1964
- FREDERICO SPENCER

- 8 de jul. de 2021
- 1 min de leitura
POR FERREIRA GULLAR
Do livro: Dentro da noite veloz
MAIO DE 1964
Na leiteria a tarde se repete
em iogurtes, coalhadas, copos
de leite
e no espelho meu rosto. São
quatro horas da tarde, em maio.
Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo
a vida
que é cheia de crianças, de flores
e mulheres, a vida,
esse direito de estar no mundo,
ter dois pés e mãos, uma cara
e a fome de tudo, a esperança.
Esse direito de todos
que nenhum ato
institucional ou constitucional
pode cassar ou legar.
Mas quantos amigos presos!
Quantos em cárceres escuros
onde a tarde fede a urina e terror.
Há muitas famílias sem rumo esta tarde
nos subúrbios de ferro gás
onde brinca irremida a infância da classe operária.
Estou aqui. O espelho
não guardará a marca deste rosto,
se simplesmente saio do lugar
ou se morro
se me matam.
Estou aqui e não estarei, um dia,
em parte alguma.
Que importa, pois?
A luta comum me acende o sangue
e me bate no peito
como o coice de uma lembrança.
AGOSTO 1964
Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados e butiques,
viajo
num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.
O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógios de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu a compro à vista aos donos do mundo
ao peso dos impostos, o verso sufoca,
poesia agora responde a inquérito policial-militar.
Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
Do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato
um poema
uma bandeira.






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