POESIA E PSICANÁLISE
- FREDERICO SPENCER

 - 22 de out.
 - 3 min de leitura
 
Atualizado: 24 de out.

LUA, SOL, SOL E LUA
Frederico Spencer
Para Benoît Le Bouteiller
Pareço querer
vender as cadeiras, sofás e poltronas
de onde me habito: aponto
para o horizonte que fascina. O fim
do mundo e suas cismas:
até onde os olhos alcançam:
os medos e os sonhos,
são lembranças:
pesarosos charcos de lodo e lama:
enfiar os pés neste atoleiro
onde as feridas se inflamam
no barro onde tudo começa
e termina
nesta viagem onde tudo é chama,
a vida pulsa e clama.
Ensaio sobre o poema:
Por Edie Jorge
O poema “LUA, SOL, SOL E LUA” trabalha com uma tensão entre o desejo de libertar-se: “pareço querer / vender as cadeiras, sofás e poltronas / de onde me habito: aponto”, para um lugar existencial, essencial para a vida: o espaço interno, psíquico e simbólico onde o sujeito “se habita”. O título evoca o casamento cósmico dos opostos: o feminino e o masculino, a noite e o dia, o inconsciente e a consciência. Essa alternância cíclica é também a dinâmica psíquica entre Eros e logos, anima e animus.
A Lua como símbolo do inconsciente, da memória e da mutabilidade, representa o campo das emoções, o corpo noturno, princípio do feminino que reflete a luz do sol. No poema, ela aparece nas imagens da interioridade e do atoleiro, o mergulho na lama do próprio inconsciente.
O sol, símbolo do logos, da consciência e da criação, representa o princípio masculino, a força ativa, o calor que anima. No poema, ele é a chama, o impulso vital que transforma a matéria bruta em energia. O ciclo “Sol-Lua”, indica reversibilidade e integração. A viagem poética é, portanto, um ritual de conjunção, o retorno à unidade primordial após o confronto com a sombra.
A oposição entre lua e sol sugere polaridades: noite e dia, inconsciente e consciência, interioridade e exterioridade. Quando o título repete — “LUA, SOL, SOL E LUA”, indica um movimento cíclico, um retorno para o inevitável - o próprio fluxo da vida.
O eu lírico está dividido entre o impulso de partir: “aponto para o horizonte que fascina” e a matéria que o prende à terra: “enfiar os pés neste atoleiro”. Então, a lama, o lodo, o barro, matérias primordiais para geração da vida, funcionam como símbolos da origem e da finitude, onde “tudo começa e termina”.
Fazendo uma leitura dos símbolos mais evidentes no poema, temos: a LUA como o feminino, o noturno, o reflexo e o inconsciente. O SOL, o masculino, o consciente, a razão e a ação. LUA E SOL, como o título do poema evoca, revela a integração dos opostos, portanto, de uma totalidade mística ou alquímica.
O poema vai da negação do conforto: a venda das cadeiras e poltronas à imersão no elemento primordial: o barro e a lama, como um enfrentamento da dor e da própria condição humana. O ritmo é meditativo, com versos que oscilam entre o concreto: “sofás e poltronas” e o metafísico: “a vida pulsa e clama”.
O sujeito poético é atravessado por uma busca de sentido na travessia entre luz e sombra, corpo e espírito, conforto e entrega. Ao fim resta a chama, símbolo da transformação, que gera uma reconciliação entre a lua e o sol, o escuro e o brilho, entre o fim e o recomeço.
Bebendo na teoria Freudiana o “Pareço querer / vender as cadeiras, sofás e poltronas / de onde me habito: aponto”, podemos pensar no desejo que nunca se satisfaz completamente, mas que se desloca constantemente. O sujeito que: “parece querer vender” seus móveis, não quer apenas livrar-se de objetos, quer na realidade desfazer-se do lugar do eu, do lugar psíquico onde se sente aprisionado.
Em Lacan, esse movimento indica o “sujeito dividido”, que tenta escapar de sua estrutura simbólica. “Vender as cadeiras” é renunciar ao conforto do eu imaginário, a casa do ego, para lançar-se no horizonte do desejo, um espaço sem garantias, mas pulsante.
Também no verso: “No barro onde tudo começa e termina”, o poema toca no real lacaniano – o que resiste à simbolização. O barro, mistura de matéria e decomposição, é o resto do corpo, a substância do nascimento e da morte. O sujeito reencontra o “barro” como encontro com o gozo (jouissance): o lugar onde o prazer se confunde com a dor, onde “as feridas se inflamam”. A viagem do poema é, portanto, uma descida ao real, para aquilo que antecede e ultrapassa a linguagem.
No verso: “Nesta viagem onde tudo é chama, / a vida pulsa e clama.” O sinthoma (Lacan, Seminário 23) é o modo singular com que cada sujeito sustenta o próprio gozo e o próprio ser. A “chama” pode ser lida como esse resto vital que resiste à dissolução, à amarra entre o corpo e a linguagem. Em: “a vida pulsa e clama” — o sujeito se reinscreve no desejo, não mais para curar-se, mas para reinventar-se.






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