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TAMBOR CÓSMICO E PSICANÁLISE

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TAMBOR CÓSMICO

Frederico Spencer

 

Dizem templo da alma, o corpo

mas é um tambor ressonando

no tempo, morada das madrugadas quentes

e dos dias frios, o gelo dos pensamentos

batendo: alma penada vaga no templo

de fantasmas

onde não há mais nada

além das assombrações, o louco

com as mãos desseca o pêndulo

solitário noite à adentro

pensando na sua amada, tateando

silhuetas entre os dedos

que teimam retornar após o enlevo

fantasmas ressonando

no templo máquina desse tempo

consumindo as horas que teimam não passar

corroendo o templo do louco.

 

Recebi de um amigo este ensaio sobre o poema:

 

ENSAIO SOBRE O TAMBOR CÓSMICO

 

O corpo já foi dito templo da alma. Mas em Tambor Cósmico ele se apresenta como um tambor ressonando no tempo, atravessado por fantasmas e assombrações que não cessam de retornar. Não há harmonia, mas reverberação; não há templo sagrado, mas eco de um vazio que insiste. O louco, figura central do poema, vaga na noite corroído pela lentidão do tempo e pela repetição de silhuetas que se impõem como espectros. Esse corpo-poema é mais do que imagem: é uma cena em que o sujeito se descobre habitado pelo que não se simboliza.

A psicanálise reconhece nesse corpo assombrado o palco do inconsciente. Freud já havia mostrado, em seus estudos sobre a histeria, que o corpo não é apenas biológico, mas também fala, denuncia, acusa o sujeito por meio de sintomas sem causa orgânica. O corpo é o lugar onde o recalcado retorna: paralisias, dores, cegueiras que são mais fantasmas do que doenças.

Lacan, ao retomar Freud, radicaliza: o corpo não é dado pela natureza, mas construído no espelho da imagem e sustentado pela linguagem. Ele não é unidade plena, mas amarra precária entre o imaginário da forma, o simbólico da nomeação e o real do gozo. Quando o simbólico falha, como na psicose, o corpo se despedaça ou se enche de vozes, invasões e estranhezas. O corpo do louco no poema é exatamente este: corroído por um tempo que não passa, invadido por fantasmas que retornam, tambor que ressoa sem cessar.

Essa ressonância poética encontra eco no conceito freudiano de retorno do recalcado. O que é reprimido não desaparece: retorna disfarçado em sintomas, sonhos, atos falhos, lapsos. No poema, as “silhuetas que teimam retornar após o enlevo” são a versão literária desses restos recalcados que se impõem ao sujeito. Para Lacan, não se trata apenas de conteúdos, mas de significantes foracluídos ou recalcados que voltam sob a forma do sintoma, inscritos no corpo ou na fala. O louco que seca o pêndulo é a imagem do sujeito entregue a esse real que insiste, sem nomeação suficiente para domesticá-lo.

É nesse ponto que a literatura de Joyce e a escrita de Lacan se encontram como caminhos de suplência. Joyce faz da linguagem um campo de invenção: neologismos, polissemias, trocadilhos e fluxos de consciência que desestabilizam qualquer ordem fixa. Sua escrita, tomada por Lacan como objeto de estudo, mostra como o sujeito pode transformar o excesso de gozo em arte, o sintoma em sinthome — amarra singular que permite viver. Lacan, por sua vez, escreve de modo hermético e fragmentado justamente para que o leitor não escape do encontro com o inconsciente estruturado como linguagem.

Assim, se Tambor Cósmico nos dá a experiência sensível de um corpo invadido por fantasmas, os outros textos nos oferecem as ferramentas para compreender essa experiência: Freud chama de retorno do recalcado, Lacan de falha do Nome-do-Pai e de invasão do real; Joyce mostra como a escrita pode ser saída, e Lacan reconhece nisso uma suplência ao colapso do simbólico.

O corpo, a loucura, a linguagem e o sintoma não são esferas separadas, mas dimensões entrelaçadas. O corpo é o tambor que vibra; a loucura é o excesso que o invade; a linguagem é o campo onde algo tenta se inscrever; o sintoma é o que retorna, insuportável e necessário. Entre poesia, teoria e literatura, o sujeito se mostra sempre assombrado, mas também inventivo: condenado a repetir, mas capaz de transformar o fantasma em palavra, o eco em escrita, o tambor em sinthome.

 

 
 
 

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© 2023 por Frederico Spencer.

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