ABRIL SITIADO
- FREDERICO SPENCER

- 1 de out. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 23 de jun.

Este comentário foi escrito pelo poeta José Luiz Mélo no ano de 2018, que havia perdido e que só agora consigo postar. Uma boa leitura.
Meu caro amigo,
Fred.
Muito obrigado pela oportunidade que me deu para conhecer melhor sua bela poesia.
Até então tinha tido acesso a poesia publicada no volume compartilhado com nosso amigo, Natanael, no “Linha de Risco”, e em alguns poemas que você tem publicado esparsamente nas democráticas páginas do Face.
Então já tinha percebido a beleza do seu estilo, a elegância com que tricota as palavras, costurando-as com concisão, para não dizer com economia, sem que no entretanto se perceba no poema palavra que se lhe acrescente ou diminua.
Vejo, nos poemas dos livros que compõem o “Abril Sitiado”, apesar do intervalo de quase de 10 anos entre a publicação de um e outro, a linha mestra do estilo na lírica do poeta.
Os anos não mudaram, ou aprimoraram (nem poderiam) a beleza dos versos. Apenas espelham o que vai na alma em um e outro momento, sem que nada lhes tolha a beleza congênita.
No primeiro dos livros, o “Poema da Vida”, o poeta quase que conversa consigo próprio, o que se contradiz a cada momento quando trata o outro personagem na segunda pessoa, o “tu”, que não deixa dúvidas quanto um existir, intemporal, para quem o poeta se dirige, numa confissão diária de entrega e de posse.
Ainda, apesar de os poemas separados e numerados para que se possa localizá-los com precisão, não se deixa de perceber a linha contínua, que dá contiguidade ao poema, unicidade, corpo inequívoco. Assim, vemos: “Demarcando minhas fronteiras, com tua seiva alimentar minhas fruteiras”, para já, no poema seguinte, continuar: “Com minhas frutas parto de tua saliva cheias, sangrando com o meu barco por entre tuas veias.”
Meu caro amigo, em si o poema flui naturalmente cantando, cantarolando, chuviscando, relampagueando, sem que precise de outro ornamento que a palavra pura e simples, com seu encanto e grandeza.
Versos belíssimos se encontram espalhados à vontade, dá gosto vê-los quase saindo da página para se mostrarem por inteiro: “Com o grafite invento a minha navalha”, “para onde o vento me levar, levarei comigo teu sal, teu grito” “Minha nau nas tuas entranhas seguirá seu destino com seu lápis nas mãos não obedecerei tua lógica” “e no meu jardim não descanso nem pasto: suas margaridas de plástico dormem no centro do meu corpo”, “minha roupa de capitão minha espada de ferro minha nau, minha cápsula lunar: Aldebarã arde no céu – um sinal”.
Gosto da maneira como pontua, deixando ao leitor a entonação e as pausas, também interagindo com o verso, como meio autor ou autor e meio, marcando no verso um sinal em sua carne.
Bem, meu caro amigo, após o 12º. poema, finalmente o: Abril Sitiado se descobre, no corpo e na alma, na emoção e na dor que campearam no corpo e na alma de todos, − todos àqueles anos.
Abril é o poeta, a página que sangra e recolhe compassiva, piedosamente o poema:
“a fio, a lã do carneiro
a faca, o sacrifício, o desafio:
quando o mundo se desnudou
era tarde, num abril”.
Personagem e autor, se revoltam, Abril revolto, revolucionário:
“das reformas
agrária morte os esperava:
estampidos demarcaram
os pedaços que lhes faltavam”.
Enquanto o poeta peregrina com Abril dentro de si:
“Hoje
abril está encravado
em mim, domado
peregrina
na minha crina”.
No entanto o poeta, o Abril, não se divorciam de sua estada mensageira, do solo e dos atavios passageiros de todos os seus sentidos:
“Saindo da tarde, o elevador
abre a noite”
Nem o poeta, o Abril se omitem, ou viram um omelete:
“Um poema
transforma pedra
por pedra, constrói uma Era”
E pontua com inigualável beleza a fragilidade do poema:
“Às vezes
poeta
num lampejo
acho o poema
bipolar
de comportamento:
é triste, às vezes chora de rir”.
Então o poema emerge das cinzas, vivo, vivíssimo, e a Praia de Piedade é seu refrigério, porto e partida:
“O espelho da água
a réstia da luz
teu vão vestido.” (como será este vão despido?)
Porque o amor é árduo combustível das tormentas:
“A mão do vento
a pele macia da areia
a derme vestida de sol.
O bico do seio
a penugem da praia”
Mais e mais versos, sem conta, orbitam, dão voltas no poema:
UMA CASA DE ILHAS
“Uma casa de ilhas e silêncios, a infância:
na janela, a manhã anotando os dias.
Retalhos de náufragos nos quatro cantos:”
SOBRE CRIANÇAS E MUNDOS
"Neste mundo
velho. Há crianças
sobre um piso em chamas"
Finalmente, antes do fim que não termina, se estende além das páginas e do que deixou escrito, tatuado, na espera de um ponto final:
ANOTAÇÕES
Deflagro-me sem poesia:
pela azia deste tempo
que se forjou. A palavra
em fuga se despe em silêncio:
(suas vestes queimam em fogo brando).
De cal o homem caia o cio. Disfarçando:
o que zela para o amanhã.
Herdo a poesia deflagrada desse tempo
com o branco da paz que o mundo reza:
na era da ogiva, ativa era.
Talvez haja poesia (a)manhã
se a paixão não corroer
as palavras no papel, esperam
libertadas.
Um belíssimo Livro. Parabéns amigo. Muito obrigado,
José Luiz Mélo






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