DA LAMA À PEDRA: UM ENSAIO POÉTICO SOBRE A MODERNIDADE
- FREDERICO SPENCER

- 15 de mar. de 2020
- 2 min de leitura
Atualizado: 16 de mar. de 2020
Seleção de poemas que traçam nossa trajetória partindo do caos dos mangues até a construção de nossa cidade onde se materializa nosso sonho de humanidade:
DO LODO E DA LAMA
Ao poeta Carlos Pena Filho
A linha fina da água
a flor no sal, o movimento
dos líquidos, entre as pernas:
a lama, o lodo amarelo e triste
raquíticos desejos, emergem:
conchas do mar, as tranças dos teus cabelos
sobre o movimento das marés:
luares gordos encharcam teus seios de guizos
nas redes, seres de olhos de vidro
te espreitam noite e dia:
morrer, mesmo sem ter vivido
na lâmina desses dias, teu convívio.
A NÁUSEA E O PÂNTANO
À Ilha de Deus, Pina, Recife, Pernambuco
Na água espessa nave, pele e osso
se fazia? Ninguém a via
aquática flor, no lodo
caranguejos, e de conchas se vestia
com as mãos, até pescoço
no líquido encarnado e viscoso
manguezal, de brotos se nutria:
fendas no lamaçal, tremia de gozo
a tarde nas mãos ardia
o viço do seu vestido novo
no movimento das marés
o vigor de suas pernas transparecia
estranha paisagem, finas e vadias
neste pão aquoso.
“A EDUCAÇÃO PELA PEDRA”
A João Cabral de Melo Neto
Dentro dos pátios das escolas
musgos, cansados e tristes
corroem os bustos
dos tempos que teimam não passar.
Longe dos muros
seres de ópio e vinho
lustram os vernizes das estantes:
os quadros negros
no giz que se esvai no tempo
a minguar, os instantes
nas praças, assistimos
passar, nas telas e nas redes
como fosse virtual.
COTIDIANO DOIS
A mulher derretia
no fogão
o bucho cozinhava. Ele bebia
com limão, esterilizava
a espera
dos dias, enquanto ela derretia
ele se banhava
na solidão
morreram, cheios:
engasgados
na gordura, corações
fritavam devagar
enquanto o fogo ardia.
POEMA WEB
Procuro-me
no google encontro
quem sou, realmente?
Esta grafia perpassada
pelo tempo, salvo na rede
nos arquivos
nas nuvens
nas teias
das conexões
por um fio, permaneço
sem chegar, a lugar nenhum
dado às digitais
além do corpo
lá fora. Nada além
nesta solidão, desfio.
CÓDIGO DE BARRAS
A cidade
não é o cinza, só:
- onde andará o azul das manhãs?
Que perdemos, na multidão:
as esquálidas barras do dia nos fascinam
com seus códigos nos falam
das vitrines:
- penso, logo existimos
nos logaritmos
dos códigos de barras:
o alimento das almas puras
comprando, a nova calça jeans
dos desejos que não são.
Andando pelas ruas
não lembro do amor, guardado
que prometi seu, só
os esquálidos códigos de barras
nos atravessam
e nos esquecemos, nesta multidão:
de luzes, nesta cidade ocre,
pulsamos, com seus luminosos:
as publicidades, nos falam
das pluralidades
que seremos um dia.
*Estes poemas fazem parte do E-book: À Luz de um Sol Impuro – FS Editora - 2019






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