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ENTREVISTA IMAGINADA COM FERREIRA GULLAR

Atualizado: 29 de jun. de 2022


FS: QUEM É FERREIRA GULLAR?

R: Sou um poeta do nordeste brasileiro, um poeta da cidade de São Luiz do Maranhão. Sou um poeta da rua do Coqueiro, da rua dos Afogados, da quinta dos Medeiros, do Caga-Osso, da rua do Sol e da praia do Caju. Um poeta da casa do quitandeiro Newton Ferreira, da casa de dona Zizi, irmão de Dodô e de Adi, de Newton, de Nelson, de Alzirinha, de Concita, de Norma, de Leda, de Consuelo, amigo de Esmagado e de Espírito da Garagem da Bosta. Um foragido e um sobrevivente. Alguém que conseguiu escapar do anonimato, que vem do sofrimento menor, da tragédia cotidiana e obscura que se desenrola sob os tetos de minha pátria, abafada em soluços; a tragédia da vida-nada, da vida-ninguém. Se algum sentido tem o que escrevo, é dar voz a esse mundo sem história.


FS: COMO A POESIA INVADIU TUA VIDA?

R: Meu pai era quitandeiro e na minha casa não havia livros. Conheci a poesia nas antologias escolares: alguns poemas e sonetos que vinham de Camões aos simbolistas e parnasianos, mas não passavam daí. Quando comecei a escrever - por volta dos 13 anos – pensava que todos os poetas já haviam morrido, e mesmo assim entreguei-me entusiasticamente a esse ofício de defuntos.


FS: O QUE O POETA FALA? DE QUE TRATA SUAS INQUIETAÇÕES?

R: O poeta fala dos outros homens e pelos outros homens, mas só na medida em que fala de si mesmo, só na medida em que se confunde com os demais. Depende, portanto, de sua personalidade – do grau de abertura dessa personalidade com respeito à sua época, com respeito à vida que se vive à sua volta, do modo como se relaciona com seus problemas e sentimentos aos problemas e sentimentos dos outros homens – o caráter de sua poesia. E nem sempre será melhor ou mais significativa a poesia que mais se volte para o mundo de todos. E pode também um poeta, centrado em sua experiência subjetiva, individual, falar por muitos. É da própria natureza da arte romper os limites da solidão, ainda que seja abismando-se nela, transcendendo-a por baixo.


FS: PARA VOCÊ, O QUE É ESCREVER UM POEMA?

R: Fazer o poema sempre foi, para mim, a tentativa de responder às indagações e perplexidades que a vida coloca. Não quis, ou não pude, buscar nele o píncaro serenamente erguido acima do drama humano. Antes, quis fazer dele a expressão desse drama, o ponto de ignição onde, se for possível, alguma luz esplenderá: uma luz da terra, uma luz do chão – nossa. O poema, ao ser feito, deve mudar alguma coisa, nem que seja o próprio poeta. Se o poeta, depois de fazer o poema, resta o mesmo que antes, o poema não tem sentido.


FS: DE ONDE BROTA A TUA POESIA?

R: Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas; nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas ruínas, nos namoros de esquina. Disso quis fazer a minha poesia, dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz.

FS: E O ATO DE ESCREVER, O QUE IMPORTA? QUAL SUA SIGNIFICAÇÃO?

R: Significa uma tal identificação entre o homem e a linguagem que trabalhar a linguagem é trabalhar o homem, e o poema torna-se desse modo um corpo novo em que o homem se constrói, melhor. E daí por que o livro que escrevi entre os anos 1950 e 1953, intitula-se A LUTA CORPORAL. Luta porque essa identificação do homem com a linguagem era uma aspiração e não uma realidade conquistada. Luta para transformar a linguagem num corpo vivo, vivo como o meu próprio corpo, denso como um ser natural, como um organismo. Pretender que o poema seja um corpo vivo é uma aspiração de todo poeta, desde que essa pretensão não perca de vista a natureza específica da linguagem, porque além de determinado limite, ela se desintegra.


FS: A POESIA DEVE SER LIVRE. EXISTE REGRA PARA SE ESCREVER POESIA?

R: Não pode nenhum poeta – nem ninguém – ter a pretensão de estabelecer rumos e regras para a poesia. Não resta dúvida de que a poesia, como qualquer outro fenômeno social, está sujeita a determinações do espaço e do tempo históricos mas o modo como essas determinações atuam sobre a produção do poema é absolutamente impossível de prever-se. A imprevisibilidade a que me referi decorre, não apenas do fato de que, neste campo, as relações de causa e efeito se dão através de complexíssimas medições, mas também devido à intervenção de um fator individual que é a personalidade do escritor.


FS: JÁ A ALGUM TEMPO NÃO OUVIMOS FALAR EM “VANGUARDA”, OU NOVAS MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS. QUAL SUA OPINIÃO SOBRE ELAS?

R: Minha posição crítica em face de determinadas manifestações da arte contemporânea pode às vezes levar algumas pessoas a pensar que tenho uma atitude aprioristicamente contrária a qualquer experiência nova em arte. Nada mais distante do que efetivamente penso. O primeiro ponto a esclarecer é meu juízo acerca das vanguardas estéticas. Trata-se de um fenômeno específico do século XX, que não pode ser confundido com a busca da renovação estética, pois esta está presente em toda a história da arte. Noutras palavras, não é necessário haver movimentos de vanguarda para que os artistas criem obras de alto valor e para que a arte se renove. A identificação equivocada entre vanguarda e a criação artística conduz muitas vezes a se perder de vista o fato de que, por exemplo, os quadros cubistas de Braque e Picasso são, muitas vezes, obras de alto valor não por serem cubistas mas por suas qualidades estéticas intrínsecas.


FS: EM SUA OPINIÃO, ENTÃO, O QUE É O “NOVO” NA ARTE?

R: O novo na arte não tem que ser um escândalo ou uma ruptura; pode ser – e na maioria das vezes é – o resultado de sutil exploração e aprofundamento temático e estilístico. Não obstante, a exigência do novo explícito tornou-se um fator decisivo na produção e na avaliação da arte contemporânea. Trata-se de um fenômeno decorrente dos movimentos de vanguarda que, como o próprio nome está dizendo, apresentavam-se como a última palavra em arte, a expressão da vida moderna, sendo o mais considerado “passadismo”, velharia, coisa superada. Como se pode concluir do que foi dito, deu-se uma inversão de valores no âmbito da avaliação e mesmo da concepção artística, já que a obra deixou-se de impor-se pelas qualidades estéticas, por sua execução, por sua complexidade, pela adequação de forma e conteúdo, para valer apenas pelo que trazia de “novo” e que, na maioria das vezes, limitava-se à busca deliberada do extravagante ou do diferente.


FS: PRODUÇÃO ARTÍSTICA E MERCADO - QUAL O PAPEL DAS ARTES NAS SOCIEDADES CAPITALISTAS?

R: Ver a arte como produção é vê-la no contexto da sociedade capitalista. É vê-la como mercadoria. As leis da produção capitalista, que visam o lucro máximo, exigem a fabricação de maior número de artigos num mesmo período de tempo. Em função dessa eficácia produtiva, desenvolvem-se técnicas e métodos de produção que determinam a falência dos concorrentes e resultam na monopolização do mercado. Será esse o objetivo dos artistas? Evidentemente, não. Os artistas não estão preocupados em monopolizar mercados como não estão à procura de meios eficazes que lhes permitam produzir em massa. E é precisamente nesse ponto que se evidencia a contradição entre a arte e a sociedade capitalista. Deve-se entender que, na sociedade da mercadoria, a arte também se transforma em mercadoria. Mas essa não é a sua essência. Não se pode levar a tese da arte como produção a ponto de perder-se de vista que ela é, antes de qualquer coisa, uma necessidade humana fundamental.


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FS: CITE UM POEMA FUNDAMENTAL PARA OS DIAS ATUAIS?

R:TRADUZIR-SE Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão.

Uma parte de mim pesa, pondera; outra parte delira. Uma parte de mim almoça e janta; outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente; outra parte se sabe de repente.

Uma parte de mim é só vertigem; outra parte, linguagem. Traduzir-se uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte — será arte?


· Textos extraídos do livro: Sobre arte, sobre poesia (Uma luz no chão).

 
 
 

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