O LIVRO DAS REMINICÊNCIAS – 2ª PÁGINA
- FREDERICO SPENCER

- 6 de out. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 4 de out. de 2023

Um conto e quatro poemas remontam as lembranças de um passado, já distante, mas que costuram a vida e um tempo cheio de retalhos, que agora se estampam nesta página, boa leitura:
À LUZ DE UM SOL IMPURO
Ocupou a praça com seus soldados.
Havia uma estratégia naquilo tudo, o porto e uma grande parte do comércio estavam naquela área antiga da cidade. Havia também os jornais: o Diario de Pernambuco, o do Commercio e o Diário da Manhã. Também um coreto e um colégio estadual.
A praça se estendia por mais de quatro quarteirões, sitiada, disputava o espaço com o crescimento da cidade que já agonizava por mudanças urbanísticas. As árvores e o gramado ralo ofereciam um clima de festa para os pássaros. Os pombos, com seu caminhar solene, também faziam seu alvoroço; passara muitas tardes nesse local, sempre acompanhado da mãe, enquanto a avó terminava os afazeres da casa.
Lembrou também das manhãs onde fazia este percurso com a professora de sua escola, que ficava numa transversal da Avenida do General Dantas Barreto - a rua da sua escola não existe mais, foi vencida pelo General, atendendo aos apelos do plano piloto da prefeitura para desafogar o trânsito da área. Augusta, a rua, morreu e levou consigo as marcas da tabuada arguida sob a ameaça da palmatória.
Nas visitas na praça, pouco a pouco traçava e delimitava os pontos de vigilância: colocava os sentinelas em seus postos. Pensara em ocupar o coreto e chamar a atenção de todos que passavam, mas preferiu ficar quieto enquanto seus soldados se movimentavam para ocupar os postos sobre seu comando; inertes em suas posições aguardariam o ataque inimigo.
As horas os consumiam, havia no ar uma sensação de abafado. Os homens derretiam no suor daquelas horas. Parecia que no final da tarde os demônios tomavam conta do tempo. Pensou em São José e sua igreja mais à frente, havia se batizado lá e isto trazia-lhe um certo relaxamento.
Ouve barulhos - alguém se aproxima. É uma força tarefa inimiga, há um confronto. Todo efetivo é utilizado. Uma batalha cruel, ganha depois de muita luta corporal. Em alguns momentos achava que toda aquela movimentação era realmente necessária, sentia prazer naquilo tudo e também um sentimento de dever cumprido.
Numa certa manhã acordou e viu todo seu efetivo nas ruas, os soldados agora haviam crescido de tamanho e se vestiam de verde musgo. Ainda de pijamas no terraço da casa não entendia como aquilo tudo havia acontecido: não estavam mais escondidos no mato. Invadiam as casas, roubavam livros e levavam pessoas conhecidas. Havia caminhões e carros escuros e não sabia de suas existências.
Ouviu dizer que naquele dia seu pai não iria trabalhar; as escolas, os jornais, a loja da Ipam, não funcionariam, estava tudo fechado. Naquela tarde não poderia ir à praça Sérgio Loreto – avisou a mãe.
Correu para a caixa onde guardava seus soldados, ainda dormiam envolvidos no peso do chumbo, esperando suas ordens - entendeu que aquela guerra não era deles, deixou que o tempo os consumisse naquele sono estratégico.
A VILA BRASIL, ERA SÓ UM DESTINO
Era de ferro e pedra, a fronteira:
os trilhos e o vapor da máquina
fumegando destinos
pela encosta, bem desenhada:
lombo alto de matemático
traço fino, que seguia
até onde se perdia o horizonte, miúdo
do menino, o lado de cá:
a maré dos xiés
e as gentes-peixe:
dentro do rio, o Capibaribe:
a lama de suas carnes,
em suas redes: olhos tristes de vidro
e escamas de flandres na panela:
ressequidos alvéolos
no sal, o mar, gigante,
ressonando suas ondas distante.
Também a casa e o sótão:
tecendo letras para o jornal, o pai,
a mãe, a avó, os irmãos e o quintal;
o muro e os outros meninos
pintados no carvão duro dos dias,
o “Coque”, mineral.
No lado de lá: a rua Imperial, as praças
o comércio de “seu Agápito” – o giro,
o motor e as bombas:
“seu Abidoral”, coberto de graxa
e de fumaça, já bem mufino:
“está pronto seu alado triciclo”, dizia,
menino: vapor de máquina de tão fino,
que és, voo de pássaro, o teu destino
até onde quiseres ir, irás. Nordestino.
CRÔNICA DA TERRA DESNUDA
Recife
canto-te em três tempos:
Re – teu sentido prático
ci – da sífilis transmutada
fe – das beatas rezadeiras.
Durante o dia
me queimo no teu sol
corando minha alma negra.
E a noite
observo teus telhados desbotados
de onde olho o mundo.
II
E era de telhados desbotados
onde vivi
a rua, que de Imperial, só o nome
reluzia, sobre o asfalto quente:
seus casarões, carcomidos pelo tempo
da antiga monarquia, vivia
e por onde enxergava
o mundo: o de Joaquim Nabuco;
o grupo escolar, das primeiras letras
se desenhava:
Joana Bezerra, a mineral, ilha
no Faber Castel, outras histórias
longe dos carnavais
dos corsos, palhaços e índios coloridos
sob um sol inclemente
a fé de muitas beatas rezadeiras:
São José, ausente, quando as águas
lambiam as casas e pontes,
carregando o pouco que havia
dos mascates insolentes. Dorme
a Recife imperial, sob o desbotado
do tempo; os primeiros passos
aprisionados ao relento.
ESPADA DE PAPEL DE JORNAL
Quando criança
via estrelas no céu
no horizonte, também
nos ombros de alguns. Com chapéu
de papel
e espada na mão, brincava
no asfalto do dia: sete,
eram seus sonhos de celofane.
Quando o sol refletiu seu olhar
no jornal do dia, hoje
mais velho,
as palavras já não sorriem
para ele - talvez preferisse cortar
do calendário, seus sonhos de infância;
no papel as notícias
dos tanques, lavando roupas antigas
no conta-gotas, as esperanças
diluíram-se nas páginas dos jornais
desses dias.
REMINISCÊNCIAS
Assistia as mãos da avó
tecendo, suas roupas e passos:
- seus cabelos na areia do tempo.
Assim tecia os dias
vestido de sol e sonhos de hortelã.
Num dia faltou-lhe as mãos
da avó, serzia manhãs
no seu quintal, de fantasmas
adotou ainda mais um
nas lembranças do menino
de roupas bordadas
pelas mãos da avó.






Incrível como é possível visualizar cada cena descrita! Parabéns pelos poemas e pela postagem!