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O LIVRO DAS REMINICÊNCIAS – 2ª PÁGINA

Atualizado: 4 de out. de 2023


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Um conto e quatro poemas remontam as lembranças de um passado, já distante, mas que costuram a vida e um tempo cheio de retalhos, que agora se estampam nesta página, boa leitura:



À LUZ DE UM SOL IMPURO


Ocupou a praça com seus soldados.

Havia uma estratégia naquilo tudo, o porto e uma grande parte do comércio estavam naquela área antiga da cidade. Havia também os jornais: o Diario de Pernambuco, o do Commercio e o Diário da Manhã. Também um coreto e um colégio estadual.

A praça se estendia por mais de quatro quarteirões, sitiada, disputava o espaço com o crescimento da cidade que já agonizava por mudanças urbanísticas. As árvores e o gramado ralo ofereciam um clima de festa para os pássaros. Os pombos, com seu caminhar solene, também faziam seu alvoroço; passara muitas tardes nesse local, sempre acompanhado da mãe, enquanto a avó terminava os afazeres da casa.

Lembrou também das manhãs onde fazia este percurso com a professora de sua escola, que ficava numa transversal da Avenida do General Dantas Barreto - a rua da sua escola não existe mais, foi vencida pelo General, atendendo aos apelos do plano piloto da prefeitura para desafogar o trânsito da área. Augusta, a rua, morreu e levou consigo as marcas da tabuada arguida sob a ameaça da palmatória.

Nas visitas na praça, pouco a pouco traçava e delimitava os pontos de vigilância: colocava os sentinelas em seus postos. Pensara em ocupar o coreto e chamar a atenção de todos que passavam, mas preferiu ficar quieto enquanto seus soldados se movimentavam para ocupar os postos sobre seu comando; inertes em suas posições aguardariam o ataque inimigo.

As horas os consumiam, havia no ar uma sensação de abafado. Os homens derretiam no suor daquelas horas. Parecia que no final da tarde os demônios tomavam conta do tempo. Pensou em São José e sua igreja mais à frente, havia se batizado lá e isto trazia-lhe um certo relaxamento.

Ouve barulhos - alguém se aproxima. É uma força tarefa inimiga, há um confronto. Todo efetivo é utilizado. Uma batalha cruel, ganha depois de muita luta corporal. Em alguns momentos achava que toda aquela movimentação era realmente necessária, sentia prazer naquilo tudo e também um sentimento de dever cumprido.

Numa certa manhã acordou e viu todo seu efetivo nas ruas, os soldados agora haviam crescido de tamanho e se vestiam de verde musgo. Ainda de pijamas no terraço da casa não entendia como aquilo tudo havia acontecido: não estavam mais escondidos no mato. Invadiam as casas, roubavam livros e levavam pessoas conhecidas. Havia caminhões e carros escuros e não sabia de suas existências.

Ouviu dizer que naquele dia seu pai não iria trabalhar; as escolas, os jornais, a loja da Ipam, não funcionariam, estava tudo fechado. Naquela tarde não poderia ir à praça Sérgio Loreto – avisou a mãe.

Correu para a caixa onde guardava seus soldados, ainda dormiam envolvidos no peso do chumbo, esperando suas ordens - entendeu que aquela guerra não era deles, deixou que o tempo os consumisse naquele sono estratégico.



A VILA BRASIL, ERA SÓ UM DESTINO


Era de ferro e pedra, a fronteira:

os trilhos e o vapor da máquina

fumegando destinos

pela encosta, bem desenhada:

lombo alto de matemático

traço fino, que seguia

até onde se perdia o horizonte, miúdo

do menino, o lado de cá:


a maré dos xiés

e as gentes-peixe:

dentro do rio, o Capibaribe:

a lama de suas carnes,

em suas redes: olhos tristes de vidro

e escamas de flandres na panela:

ressequidos alvéolos

no sal, o mar, gigante,

ressonando suas ondas distante.


Também a casa e o sótão:

tecendo letras para o jornal, o pai,

a mãe, a avó, os irmãos e o quintal;

o muro e os outros meninos

pintados no carvão duro dos dias,

o “Coque”, mineral.


No lado de lá: a rua Imperial, as praças

o comércio de “seu Agápito” – o giro,

o motor e as bombas:

“seu Abidoral”, coberto de graxa

e de fumaça, já bem mufino:

“está pronto seu alado triciclo”, dizia,

menino: vapor de máquina de tão fino,

que és, voo de pássaro, o teu destino

até onde quiseres ir, irás. Nordestino.



CRÔNICA DA TERRA DESNUDA


Recife

canto-te em três tempos:

Re – teu sentido prático

ci – da sífilis transmutada

fe – das beatas rezadeiras.

Durante o dia

me queimo no teu sol

corando minha alma negra.

E a noite

observo teus telhados desbotados

de onde olho o mundo.

II

E era de telhados desbotados

onde vivi

a rua, que de Imperial, só o nome

reluzia, sobre o asfalto quente:

seus casarões, carcomidos pelo tempo

da antiga monarquia, vivia

e por onde enxergava

o mundo: o de Joaquim Nabuco;

o grupo escolar, das primeiras letras

se desenhava:

Joana Bezerra, a mineral, ilha

no Faber Castel, outras histórias

longe dos carnavais

dos corsos, palhaços e índios coloridos

sob um sol inclemente

a fé de muitas beatas rezadeiras:

São José, ausente, quando as águas

lambiam as casas e pontes,

carregando o pouco que havia

dos mascates insolentes. Dorme

a Recife imperial, sob o desbotado

do tempo; os primeiros passos

aprisionados ao relento.


ESPADA DE PAPEL DE JORNAL


Quando criança

via estrelas no céu

no horizonte, também

nos ombros de alguns. Com chapéu

de papel

e espada na mão, brincava

no asfalto do dia: sete,

eram seus sonhos de celofane.

Quando o sol refletiu seu olhar

no jornal do dia, hoje

mais velho,

as palavras já não sorriem

para ele - talvez preferisse cortar

do calendário, seus sonhos de infância;

no papel as notícias

dos tanques, lavando roupas antigas

no conta-gotas, as esperanças

diluíram-se nas páginas dos jornais

desses dias.


REMINISCÊNCIAS


Assistia as mãos da avó

tecendo, suas roupas e passos:

- seus cabelos na areia do tempo.

Assim tecia os dias

vestido de sol e sonhos de hortelã.

Num dia faltou-lhe as mãos

da avó, serzia manhãs

no seu quintal, de fantasmas

adotou ainda mais um

nas lembranças do menino

de roupas bordadas

pelas mãos da avó.

 
 
 

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05 de out. de 2023
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Incrível como é possível visualizar cada cena descrita! Parabéns pelos poemas e pela postagem!

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© 2023 por Frederico Spencer.

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